Chef Benê Ricardo é homenageada em novo gastrobar de Minas Gerais
O Mulheres na Gastronomia já deveria ter falado sobre Benê Ricardo muito antes. Ela fez história como a primeira mulher brasileira a receber um diploma de chef de cozinha, quando formou-se pelo Senac de Águas de São Pedro, em 1981. Uma época em que o curso de formação profissional para cozinheiro ainda era restrito para os homens.
“Decidi homenageá-la em dois pratos, para difundir seu nome e sua história para pessoas que, assim como eu, não a conhecia”, diz Neuber Fischer, sócio do Observatório Gastrobar e Café. Inaugurado em dezembro de 2021, na cidade de Ouro Fino, Minas Gerais, o espaço nasce para servir e promover o melhor da gastronomia mineira, valorizando os ingredientes, produtos e fornecedores locais e regionais.
Uma mistura do ambiente descontraído e os bons drinks de um bar com o aconchego e conforto de um restaurante de alta gastronomia mineira. A reverência à Benê aparece nos preparos, por meio de duas especialidades da chef. São eles o arroz ao forno (arroz branco, milho, ervilha, cenoura, batata, palmito, tomate, frango e muçarela – R$ 30) e o Cuscuz (farinha de milho, sardinha, milho, ervilha, ovos, tomate com repolho roxo refogado e linguiça caipira – R$ 30).
A localização do gastrobar não deixa de ser uma homenagem. Afinal, Benê Ricardo também foi criada em Ouro Fino. A decoração traz as cores inspiradas na bandeira do município e faz uma imersão pela história da cidade que remete ao principal produto agrícola da região, o café.
Sem perder de vista a tradição da cozinha mineira e valorizando os produtos regionais e locais, a casa reinterpreta pratos clássicos como Tropeiro (trouxa de couve recheada com feijão tropeiro, ovo mollet empanado, linguiça caipira e milho assado – R$ 40); Vaca Atolada (costela de vaca com mandioca, farofa, arroz branco e vinagrete – R$ 35); e Pururuca (panceta de rolo à pururuca com tutu de feijão e banana frita – R$ 35). Os fãs dos saborosos doces mineiros também encontram um menu degustação com Doce de leite, Pé de moleque, Cocadas branca e queimada, Doce de abóbora, Banana cristalizada, entre outros.
Quem foi Benê Ricardo
Criada em São José do Mato Dentro, zona rural da cidade de Ouro Fino (MG), em 1944, e aprendeu a cozinhar com a avó, D. Eugênia. “Lembro-me muito dela na beira do fogão, preparando os quitutes que fazia sob encomenda para as festas das pessoas abastadas da cidade”, diz Benê em seu livro “Culinária da Benê”.
Ficou órfã aos 12 anos e virou empregada doméstica na casa da família que a “pegou para criar”. Depois, começou a trabalhar na casa de uma outra família, que vivia no estado de São Paulo. Descendente de europeus, a família chegou a se mudar para a Alemanha. E Benê foi junto.
Voltou especialista em culinária alemã. “Minha patroa assinava a revista Claudia, [que, certa vez, fez um concurso de culinária] para mandar uma receita e concorrer a um prêmio”, relembrou durante uma entrevista para a cientista social Bianca Briguglio. O áudio foi disponibilizado para o “Negra Voz Podcast”, do jornal “O Globo”.
Benê decidiu enviar uma receita. Uma torta de temperos. E, para sua surpresa, ganhou o primeiro lugar: a oportunidade de trabalhar na cozinha experimental da Editora Abril, onde a equipe testava as receitas enviadas pelos leitores e fotografava os pratos para incluir na edição. Ficou lá por 3 meses.
Com o tempo, especializou-se em grandes jantares – ou, melhor dizendo, banquetes – na casa de empresários paulistanos. Pela força do boca a boca, começou a ganhar reconhecimento no ramo. O trabalho agradava os clientes e eles, sempre que podiam, indicavam os serviços de Benê para outros amigos.
Em uma dessas ocasiões, foi contratada para fazer um jantar alemão. “Um dos convidados pediu para conhecer a cozinheira. Ele tinha certeza que seria uma fräulein, uma alemã, porque a comida estava muito boa”, conta Bianca, no podcast. Deparou-se com Benê. Uma mulher negra e brasileira.
Esse convidado era ninguém menos que o ex-presidente do Brasil Ernesto Geisel, que liderou o país durante a ditadura militar brasileira. Junto com o presidente da Federação do Comércio, José Papa Jr (que também estava presente no jantar), eles ofereceram uma bolsa de estudos para que ela cursasse gastronomia no Senac.
No entanto, a faculdade não lhe dava direito ao alojamento de estudantes, exclusivamente masculino. Por isso, Benê morou numa pensão, onde cozinhava e fazia faxina aos finais de semana em troca de uma cama no quartinho do fundo.
Aos 38 anos, Benê Ricardo se tornou a primeira mulher a receber o diploma de Cozinheiro pelo Senac. Já formada, deixou o interior paulista para supervisionar a cozinha do Maksoud Plaza, que durante 42 anos foi um dos mais importantes hotéis da cidade de São Paulo, até fechar as portas em dezembro deste ano.
Em 1986, montou o Buffet e Eventos Benê. O serviço a consolidou como uma das grandes banqueteiras de São Paulo. Por pouco, não representou o Brasil na edição 2001 do Concurso Bocuse d’Or, na França.
Benê foi uma mulher pioneira. Enfrentou o machismo, o racismo e o preconceito de classe. Faleceu em março de 2018, aos 74 anos, em consequência de um câncer de pâncreas. E cabe a nós, como sociedade, manter o seu legado – a luta incansável por cada pequena conquista e uma grande paixão pela cozinha brasileira.