Gastronomia indígena
Kalymaracaya Mendes, primeira chef indígena do país, honra a gastronomia ancestral brasileira com ingredientes típicos de sua tribo.
Letícia Mendes Nogueira, de 38 anos, é natural da tribo indígena Terena, no Mato Grosso do Sul. Começou a cozinhar ainda pequena, ajudando a mãe, avó e tia com os preparos dos alimentos. Curiosa e sempre com vontade de aprender cada vez mais, andava pelas matas em busca de algum alimento dos frutos do cerrado. “Achava tão bonito, a arte de transformar alguns ingredientes em comida”, conta. Na adolescência, por volta dos quinze anos, os programas de culinária da TV eram os professores. E a aluna dedicada muitas vezes deixava de sair de casa para poder assistir aos conteúdos gastronômicos.
Hoje, Letícia é mais conhecida como Kalymaracaya. “Kaly” significa pequeno e “maracaya”, gato, formando o nome de origem indígena que significa “gatinha”. Embora todos os terena tenham nome de animais, a tradição das nomenclaturas vem gradualmente sendo deixada de lado conforme o grupo migra para as cidades.
É formada em turismo e gastronomia. Além disso, é pós-graduada em História e Cultura Indígena e Afro-Brasileira. Na faculdade de especialização da culinária, Kalymaracaya deparou-se com seus primeiros desafios. Queria introduzir em seus trabalhos alguns pratos típicos de sua tribo, a homenageando por meio da comida. “Não” foi a palavra que muitas vezes escutou no processo. Insistiu, ainda que a chamassem de louca. Fez diversos cursos de gastronomia e, aos poucos, foi se especializando na área.
Enfim formou-se. Contudo, desempregada, as dificuldades em colocar o sonho em prática. “Aí surgiu a era da internet. Usei as redes sociais e escrevi para o Fábio Cunha, um chef que vi na televisão”, relata. Contou seu desejo de divulgar a gastronomia indígena e representar o seu povo por meio dela. Entretanto, como moravam em estados diferentes, Kalymaracaya não pôde mudar-se para a Paraíba, onde Fábio vivia.
Mas não foi tudo por água abaixo. Fábio a apresentou ao seu amigo, o sul-mato-grossense Paulo Machado, chef reconhecido por seus estudos da culinária regional do Brasil. Encontraram-se em Janeiro de 2015. Um simples vídeo postado nas redes sociais de Machado ao lado de Kalymaracaya fez com que milhares de pessoas se interessassem por seu trabalho. Desde então, ela recebe convites para participar de eventos nacionais e internacionais.
Kalymaracaya é a única chef cozinheira indígena do país, e faz o possível para transmitir os costumes de seu povo. “Uso cocar, adereços e pinto o rosto, tudo para compor a cultura indígena. Isso é muito importante, porque as pessoas sabem muito pouco sobre esta culinária, tão importante no cenário nacional”.
Ela divulga a culinária indígena participando de festivais gastronômicos, ministrando cursos e palestras em faculdades ao redor do mundo. “Em boa parte de onde vou, a comida é muito bem recebida, as pessoas ficam interessadas neste tipo de gastronomia, a gastronomia raiz”, garante. Aquela gastronomia mais autêntica, em que o sabor e a história valem mais do que um menu em um restaurante sofisticado.
É uma gastronomia rica e natural, que utiliza ingredientes nativos, sem muitos temperos. “Na cozinha indígena não temos um prato de entrada. A entrada pode ser o próprio prato principal”. Ela explica que para compreender essa culinária é importante deixar de lado as técnicas francesas. Em contraste com a tradição européia, na gastronomia indígena brasileira não há certos pontos da carne, de modo que são sempre muito bem passadas e nada próximas do cru. Ou seja, não há o consumo de carne mal passada.
Os ingredientes são plurais, extremamente variados e cultivados em sua tribo. Os mais comuns são castanha de bocaiuva, pequi, cumbaru, castanha-do-Pará, palmito guariroba, bacuri, assim também como guavira, carnes de caça, peixes de rio, mandioca, batatas, inhames, trevo de três folhas, café de fedegoso, e muitos outros. “A principal característica da minha culinária é a cozinha contemporânea. Trabalho sem perder a essência do prato. Por exemplo, quando faço o prato chamado Hî-hî (bolinho de mandioca envolto na folha de bananeira) não coloco sal nem açúcar, procuro dar um ar sofisticado no acompanhamento, preservando a essência do prato”, esclarece.
A elaboração de novas receitas pode ser um pouco complicado, porque a chef vai atrás dos ingredientes indígenas como referência. Entretanto, o processo de criação em si é tranquilo. Como resultado, Kalymaracaya oferece pratos de especialidade é indígena, mas sem deixar de lado a regionalidade, contemporaneidade e a alta gastronomia mundial.
De fato não é um processo fácil. Não só enfrenta obstáculos por mulher, como também por ser indígena. “Tenho enfrentado tudo com garra e feito a diferença por onde eu vou. Nem dou ouvido, finjo que não é comigo”, afirma. Na cidade, ela conta que o preconceito está presente todos os dias. “Acredito que seja por conta das brigas sobre terra, entre índios e fazendeiros”.
Apesar de tudo, a cabeça continua erguida e seu trabalho continua. “[A melhor parte do meu trabalho] é saber que meus ensinamentos estão sendo feito em algum lugar do país, luto todos os dias pela gastronomia indígena e quero um dia que seja reconhecida como a melhor do mundo”, reconhece.
Instagram: @kalymaracaya
Facebook: Kalymaracaya Mendes Nogueira
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Foto destaque: Moura Photos