Mulheres na cozinha: o paradoxo
Por que as mulheres, sempre atribuídas à cozinha doméstica, não são as chefs estrelas da gastronomia?
Não é nada fácil ser uma mulher na gastronomia. Apesar de serem historicamente relegadas à cozinha, com o dever de cuidar da casa e de garantir a mesa posta para a família, não são elas que recebem o prestígio profissional à frente de uma cozinha.
Você já parou para pensar por que só 5% dos restaurantes com estrelas Michelin do mundo são comandados por mulheres? Ou então por que elas ainda são a minoria em listas internacionais como a World’s 50 Best Restaurant? Certamente, não é por falta de cozinheiras aptas o suficiente para a tarefa. O motivo é uníssono: machismo.
Um pouco de história
Mas de onde vem o paradoxo das mulheres na gastronomia? Voltemos alguns séculos. Os portugueses chegaram ao Brasil em 1500 e passaram a conquistar novas terras e exercer um domínio sobre os povos locais.
Contudo, os europeus, tradicionalmente, consideravam o trabalho braçal uma atividade inferior, por ser algo complexo e que demandava grande esforço físico. Foi por isso que, por volta de 1550, os portugueses decidiram traficar escravos para o Brasil.
Durante três séculos, os africanos tiveram que deixar suas terras para trabalhar forçadamente; não só no plantio da cana-de-açúcar, mas também nas atividades domésticas. Encarregados de prover a alimentação dos senhores brancos, eram eles, e somente eles, que colocavam a mão na massa e preparavam as refeições.
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Logo depois da abolição, os afazeres domésticos foram passados para as mulheres. Por quê? Bom, as profissões consideradas “mais qualificadas”, que exigiam maior esforço físico e intelectual, eram naturalmente atreladas aos homens, pois eram considerados um grupo mais forte e de maior acesso ao conhecimento.
Eles saiam de casa para trabalhar e sustentar a família. Por outro lado, as mulheres ficavam com as tarefas domésticas, cujo conhecimento poderia ser passado de mãe para filha, sem precisar de uma educação aprofundada e tanta qualificação.
Homem é chef, mulher é cozinheira
E assim chegamos na grande ironia. Ao mesmo tempo que ass mulheres sempre foram atribuídas à figura da dona de casa e da cozinheira da família, elas não ocupam lugar de destaque na gastronomia profissional.
Em “Os donos e as donas da cozinha”, Lívia Barbosa argumenta que “homens e mulheres, desde que o mundo é mundo, sempre estiveram presentes nas cozinhas e envolvidos no preparo de alimentos. Mas sempre estiveram em cozinhas diferentes. As mulheres nas cozinhas das casas, e os homens nas cozinhas das ruas. Ou seja, mulheres cozinhavam e cozinham para a família. Homens, cozinhavam e cozinham para pessoas estranhas em restaurantes, castelos e palácios de governo. Os homens sempre foram chefs e as mulheres, cozinheiras”.
No século 20, o chef francês Auguste Escoffier defendia que a cozinha profissional era uma “arte elevada”. Por ser uma tarefa quente e pesada, deveria ser exclusiva dos homens.
As mulheres, julgadas mais delicadas, frágeis e sensíveis, ficavam só com as tarefas consideradas mais simples; sem carregar panelas pesadas, ficar horas em pé, mexer com o fogo e ocupar os altos cargos dentro da profissão. Dessa forma, o mesmo mundo que reduzia as mulheres às cozinheiras de família, também as reprimia quando realizavam a atividade de modo semelhante aos homens.
Nora Bouazzouni, autora do livro Fominismo, argumenta que “seja pela divisão do trabalho, pela segregação alimentar ou pela orientação das práticas de consumo por meio de proibições, discriminações ou ditames estéticos, a comida serve para manter as mulheres no lugar que lhes foi designado, há milênios, no espaço ou na sociedade”.
Às mulheres, permite-se que cozinhem no espaço doméstico, mas não que comandem um restaurante. “Elas continuam sendo impedidas por injustiças estruturais e discriminações sistêmicas, como machismo, assédio, bancos reticentes a lhes ceder empréstimos, licença paternidade mínima, etc. Elas têm frequentemente menos tempo, menos condições e menos poder que os homens, o que as torna menos disponíveis; ou seja, menos visíveis em termos midiáticos”, diz a autora.
Basta olharmos para o juri das competições como Top Chef, Mestre do Sabor ou Masterchef: a mulher é sempre minoria. O mesmo acontece nos festivais de comida, onde as programações incluem, em grande parte, chefs homens.
Sem dúvida, existem diversas cozinheiras aptas para serem prestigiadas. O que falta é o reconhecimento dessas mulheres dentro da profissão.
A mudança
É por isso que é crucial quebrar as estruturas em que a gente vive. Em Lyon, cidade conhecida como um dos melhores centros gastronômicos do mundo, foram as Mères de Lyon que criaram as bases da culinária local. Elas nada mais eram do que mulheres que cozinhavam, sobretudo, para as famílias burguesas da região e decidiram abrir os próprios restaurantes.
Desde então, temos cada vez mais mulheres ganhando destaque na cozinha. Helena Rizzo, por exemplo, foi eleita a melhor chef da América Latina pelo prêmio 50 Best Restaurants of the World em 2013 e a melhor chef do mundo em 2014, além de chef do ano pela Veja Comer&Beber, em 2009 e 2015.
Ou então Janaína Rueda, do Bar da Dona Onça. Em 2020, ela foi a vencedora do prêmio Ícone da revista britânica “Restaurant”, que homenageia os agentes da gastronomia que têm impacto positivo e promovem mudanças não só no setor como também em suas comunidades.
E a lista não para por aí. Mara Salles, Paola Carosella, Roberta Sudbrack, Carmem Virgínia, Saiko Izawa, Anne-Sophie Pic e Lígia Karazawa são só algumas delas.
É claro que nós temos mulheres na gastronomia profissional, assim como também temos homens anônimos que cozinham apenas dentro de casa. Mas a realidade é que chefs mulheres ainda são menos valorizadas do que os homens, recebem menos oportunidades de trabalho e sofrem com assédios morais e sexuais no dia a dia.
Muito já foi conquistado, mas a luta não acabou. Se você é mulher, te convido a seguir reivindicando seus direitos, seja na cozinha, ou fora dela. Se você é homem e chegou até aqui, te convido a entender o seu lugar de privilégio e, respeitando o protagonismo feminino na luta pela igualdade de direitos, aliar-se à causa. Afinal, na luta por igualdade, só vence quem empata.
Foto: Pixabay